Testemunho de uma Terapeuta
Ocupacional
Chegou o mês de abril e com ele chega uma data tão importante, que não passa despercebida aos Terapeutas Ocupacionais que dedicam a sua intervenção às crianças. Dia 2 de abril é o Dia Mundial da Consciencialização para o Autismo.
De forma simples, podemos dizer que a perturbação do espetro do autismo é um chapéu-de-chuva enorme que inclui:
- Dificuldades na interação social.
- Dificuldade na comunicação verbal e não-verbal.
- Dificuldade em colocar-se na pele de outros.
- Movimentos repetitivos com as mãos ou corpo (estereotipias), sons ou atividades repetitivas.
- Fixação por certos temas.
- Dificuldade na resolução de problemas (rigidez de pensamento).
- Dificuldade em lidar com o inesperado.
- Descoordenação motora.
- Alterações sensoriais.
Todas as crianças com autismo reúnem estas caraterísticas, no entanto, podemos observar comportamentos mais vincados e evidentes numas e noutras não. Recordo-me de ser abordada por uma mãe que me questionava “- Oh terapeuta, o meu filho não tem problemas de interação social, ele fala pelos cotovelos e fala com toda a gente, inclusive com estranhos!” Aí está! O senso comum diz-nos que os autistas se fecham no seu mundo (ainda estou para descobrir que mundo é esse, se só existe um), ou não falam, ou se recusam a falar e apenas falam no ambiente familiar, mas e aqueles que não adquiriram o ‘filtro social’? Falam com estranhos, como se fossem pessoas próximas, não será isso um problema? Sim, claro! Há sempre os dois lados da moeda. Há os ‘desajeitados’, que passam a vida a arrastar os pés no chão ou andam em bicos de pés, e há aqueles que são dotados de uma elasticidade tal que mais parecem contorcionistas de um circo. A interação social está efetivamente comprometida nestas crianças. Mas afinal como é que a terapia ocupacional pode ajudar? O papel do terapeuta ocupacional passa por conhecer a criança, criar uma relação, oferecer segurança, garantir conforto, brincar, brincar e brincar! Traçar um plano de intervenção, com atividades significativas que potenciem o envolvimento e participação nas várias ocupações, de forma autónoma q.b. Não menos importante é conhecer também as preocupações dos pais ou cuidadores destas crianças.
Muitas vezes, quando avalio uma criança de 6 ou 7 anos, em idade escolar, parto do princípio que a queixa principal estará relacionada com a motricidade fina (a forma como pega no lápis, por exemplo, ou a criança que se cansa facilmente ao escrever). Mas não!, muitas vezes, estas mães ou pais estão mais preocupados com o facto de os seus filhos nunca serem convidados para festas de aniversário dos restantes colegas da escola. É preocupante! Somos seres sociais e, bem ou mal, temos de nos relacionar com os demais, por vezes de forma desapropriada, é certo! Acompanhei um adolescente que, por não ter as ferramentas sociais totalmente adquiridas (ou socialmente aceites), iniciava uma conversação sempre com a mesma frase “- És minha namorada?”. Questão assustadora e muitas vezes motivo para um virar de costas. Quando fomos a ver, afinal o R. não se dirigia apenas às meninas daquela forma tão peculiar, aos homens era igual! E até era capaz de adequar a frase ao género, dizendo “- És meu namorado?”. Afinal, era esta a forma encontrada para iniciar uma relação, para ‘meter conversa’ com alguém, sem maldade, sem segundos significados, até porque as metáforas não são um ponto forte. São literais, sim! O que é, é! “És um mãos de aranha” é quanto baste para gerar uma discussão cujo tema é: as aranhas não têm mãos, mas sim patas!
Ensinamos crianças a brincar, e elas a nós! Nunca tinha percebido qual a magia de ficar a observar a roda de um carrinho a girar, deitada no chão de barriga para baixo, apenas com a visão periférica, o chamado ‘olhar pelo canto do olho’. É uma visão completamente diferente… A paixão pelo detalhe é outra caraterística que considero fantástica acerca da qual vos relato uma experiência. Desde muito pequeno, um dos meninos que acompanhei, tinha um único interesse, a fotografia. Adorava tirar fotos, ver as fotos que tirava e partilhar o seu interesse com os restantes, mesmo com alguém que estivesse sentado numa paragem de autocarro (diria eu que era a maneira mais fácil de interagir). Quando esta criança cresceu, deixou de ser ‘socialmente aceite’ que andasse por aí a tirar fotografias a terceiros, ah e tal porque não se pode fazer isso! Qual não foi o nosso espanto quando percebemos que na maioria das fotos não era visível a cara das pessoas, mas sim pormenores, um botão do colarinho, um brinco, um piercinge por aí além…
Interesses restritos… há quem domine o tema dos dinossauros e aos 3 anos de idade detém um conhecimento detalhado de nomes, porém as brincadeiras andam à volta deste tema, não dando espaço aos interesses dos outros. As bandeiras dos países, Legos ou puzzles, trajetos de transportes públicos, ouvir vídeos no Youtube em russo ou chinês, marcas de produtos, matrículas de carros, etc.
Por volta dos 4-5 anos, as educadoras levantam preocupações, tais como: a criança parece não ter interesse nas atividades de grupo; brinca sozinha; adora observar os carros de diversos ângulos; gosta de empilhar ou criar filas com os objetos; não é espontânea no jogo de faz-de-conta e algumas não sabem mesmo brincar! Aqui entra a terapia ocupacional, lá vamos nós munidos de material, por vezes em vão. Já aconteceu planear uma sessão num jardim-de-infância para um menino de 2 anos que adorava atirar os objetos para o chão, na qual achei por bem transportar um túnel, uma tenda e afins…Conclusão? Passámos uma hora a brincar com um pompom. Se é frustrante para mim? Não! É gratificante perceber que aquele pompom foi o elo de ligação para criar laços futuros e serviu para brincar.
Nós, Terapeutas Ocupacionais, lutamos todos os dias pela inclusão, pela abolição do estigma, pela consciencialização, pela alegria e felicidade destas crianças (e de todas as outras, noutras condições). Queremos que cresçam numa sociedade que as entenda e não as veja como mal-educadas quando estão a ser sobrecarregadas de estímulos num centro comercial e entram em ‘crise’, comumente chamada birra.
Nós, Terapeutas Ocupacionais, intervimos em gabinetes, no contexto casa, no contexto escola, no contexto mais apropriado para aquela criança. Normalmente no contexto onde residem as dificuldades. As questões de interação social, se são sociais, deverão ser ‘brincadas’ (não gosto do termo ‘trabalhadas’, com crianças) no seu contexto real, nas creches, jardins-de-infância, escolas, no futebol, no judo, râguebi e por aí…
Como descrevo a terapia ocupacional? É somente a MELHOR PROFISSÃO DO MUNDO, pois permite transmitir e receber conhecimento, todos os dias! A minha sobrinha de 5 anos faz a mesma pergunta vezes sem conta –“Oh titi, o teu trabalho é brincar com os meninos?”
É gratificante! Brincar com crianças não é assim tão simples, atenção! Primeiro porque estamos a falar de crianças, que correm, trepam paredes, caem a todo o momento, segundo porque as crianças são muito mais exigentes do que os adultos, certo? Adoram fazer perguntas, gostam de desafios, procuram testar a nossa capacidade de atenção e de paciência. Levam-nos ao limite, muitas vezes! É nesse limite que adoro ainda mais ser TERAPEUTA OCUPACIONAL. Normalmente tudo acaba em risadas, ou a rebolar no chão a fazer cócegas ou apenas a trocar aquele olhar maroto!!!
Patrícia Silva, Terapeuta Ocupacional da Fisiotrimtrim
Especializada nas Perturbações do Espetro do Autismo e em Integração Sensorial